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Brasil realizou 8 transplantes de pulmão pós-Covid, mas cirurgia não é solução para doença

Após mais de um mês de sedação por causa da Covid-19, o analista de sistemas Henrique Batista do Nascimento, de 31 anos, estava num leito da Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do Instituto do Coração (Incor), em São Paulo, quando recebeu uma visita dos médicos. Com graves complicações, o paciente ouviu que o comprometimento de seu pulmão era considerado irreversível. Mas havia ainda uma chance: o transplante total do órgão.

“Na hora em que ela [a médica] falou, parecia que minha alma ia sair do corpo”, lembra Nascimento. Leigo sobre o procedimento, ele não sabia nem que isso era possível, mas topou. “Para que eu continuasse vivo, tinha de fazer o transplante. Eu queria voltar pra casa, ver meu filho, o que me deu muita força também para aceitar”, afirma.

O consentimento do paciente é um dos critérios necessários para que o transplante de pulmão pós-Covid possa ser realizado. Doentes que não tenham condições de serem acordados para a consulta não podem ser transplantados, ainda que haja consentimento da família (veja, mais abaixo, as demais condições para a realização da cirurgia).

A cirurgia é rara, complexa e feita pelos maiores centros hospitalares do mundo. No Brasil, até aqui, foram realizados oito: três no Incor, quatro no Hospital Israelita Albert Einstein, também em São Paulo, e um na Santa Casa de Porto Alegre – a maior parte, pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Desses oito, quatro pacientes não resistiram. Algumas mortes aconteceram mais de 30 dias após o transplante, por outras complicações.

O transplante de pulmão é feito há cerca de 30 anos no país, mas o paciente grave de Covid trouxe desafios e imprevisibilidades novas aos médicos.

“Eu já cuidei de, talvez, mais de 500 pacientes transplantados de pulmão [desse total, quatro casos eram de infectados por coronavírus]. E é uma situação nova e desafiadora, mas o mais desafiador é a reabilitação do paciente”, diz José Eduardo Afonso Júnior, coordenador médico do programa de transplantes do Einstein.

Partiu do hospital a iniciativa da elaboração de uma lista de parâmetros que norteou as cirurgias de transplante de pulmão pós-Covid no estado de São Paulo. O texto também foi encaminhado ao Sistema Nacional de Transplantes.

Além disso, o transplante pós-Covid também acelerou um debate no corpo médico do Brasil: a questão da chamada “priorização” na hora de definir quais pacientes devem ser colocados à frente na fila espera pelo procedimento de pulmão.

Hoje, essa lista de espera é organizada basicamente em ordem cronológica (ou seja, a prioridade é de quem chega primeiro). Isso significa que não se leva em conta, na hora da priorização, a gravidade de cada caso. E é precisamente a possibilidade de esse parâmetro passar a ser adotado que passou a ser discutida (leia mais ao final desta reportagem).

A exigência de uma série de critérios clínicos para que alguém possa ser transplantado não é só importante para que a pessoa tenha boas chances de recuperação. É também para que não se tire a chance de alguém com possibilidades melhores, já que há mais pessoas na lista de espera do que pulmões disponíveis.

“Transplante de pulmão não é a solução para a Covid. É um procedimento ultracomplexo e que só se enquadra para poucos pacientes extremamente selecionados”, conta o médico Afonso Júnior. “Considerando que tem mais de 600 mil óbitos por Covid, ter feito 8 transplantes pós-Covid é irrisório, se comparado a qualquer opção terapêutica.”

Nesta reportagem, você lerá sobre os principais desafios médicos do transplante de pulmão pós-Covid e as histórias de pessoas que passaram pela cirurgia, como o o morador de Maceió de 61 anos que teve alta após 257 dias de internação e a moradora de Natal que pegou Covid quando estava grávida, teve de fazer um parto de emergência e depois recebeu um novo pulmão.

Critérios para o transplante

O Einstein começou a avaliar pacientes para o transplante de pulmão ainda em 2020. Sem uma diretriz nacional, o hospital usou sua expertise para definir quem estaria apto à cirurgia. “Nós acabamos tomando uma decisão de assumir a frente dessa situação, porque temos toda condição tecnológica e de estrutura dentro do hospital para fazer transplantes de alta complexidade”, afirma Afonso Júnior.

O primeiro transplante de pulmão pós-Covid do hospital – e do Brasil – aconteceu em 18 de novembro do ano passado. O transplantado era um médico de 50 anos que morava no Tocantins e havia se infectado cuidando de pacientes com Covid. Ele já chegou ao Einstein intubado.

O médico teve complicações infecciosas e não resistiu. Após a morte ele, a equipe de transplantes do Einstein reviu todas as etapas do processo de avaliação, tornando a seleção de pacientes para o transplante ainda mais rígida e restrita. A conduta também foi discutido com centros de transplante de fora do Brasil.

Em seguida, o Einstein apresentou a nova diretriz à Câmara Técnica da Central de Transplantes da Secretaria Estadual de Saúde. Finalmente, com outras instituições, foi criado um documento oficial que passou a nortear norteou as cirurgias de transplante de pulmão pós-Covid no estado de SP, em texto também encaminhado ao Sistema Nacional de Transplantes.

Veja, abaixo, quais são as principais exigências que habilitam um paciente a passar pelo procedimento:

  • recuperação do pulmão considerada irreversível, em diagnóstico feito seis semanas após os primeiros sintomas de Covid;
  • mínimo de seis semanas de dependência de ventilação mecânica ou ECMO (oxigenação do paciente feita por uma membrana fora do corpo);
  • demais órgãos (como rim e coração) devem estar preservados e não apresentar disfunções;
  • exame PCR negativo para Covid antes da cirurgia;
  • força e possibilidade de reabilitação muscular;
  • e o paciente lúcido e acordado para ser consultado sobre a cirurgia.

O caso divisor de águas

Com as novas regras, o Einstein avaliou mais de 30 pacientes para o transplante, e apenas quatro foram considerados aptos e passaram pela cirurgia.

O segundo a receber um novo pulmão foi o empresário Hipólito Correia Costa, de 61 anos. Transferido de Maceió para a capital paulista, ele foi internado em outubro e estava havia desafiadores 88 dias em ECMO.

O transplante, já sob o novo protocolo, foi um sucesso e é considerado um divisor de águas nos transplantes pós-Covid no país. Hipólito teve alta após 257 dias de internação, para continuar a recuperação em casa, com a família.

Transplante pós-Covid (e pós-parto)

Após a cirurgia, os pacientes têm um longo caminho de reabilitação, não só por causa adaptação ao novo órgão, mas também em razão do quadro grave e dos meses de luta contra as complicações da Covid.

“Para esses pacientes que estão muito tempo acamados, a recuperação, do ponto de vista muscular, é mais difícil até do que a recuperação pulmonar”, explica José Eduardo Afonso Júnior, médico do Einstein.

Especialmente desafiador foi o transplante de Ana Rayane dos Santos Medeiros, de 31 anos, moradora de Natal. Ela se infectou com Covid em junho, quando estava grávida. Depois da internação, o quadro se complicou, e o parto acabou sendo antecipado. Três dias depois, Ana Rayane foi intubada.

A equipe do Einstein teve de fazer toda a avaliação da viabilidade do transplante por telemedicina. Segundo o coordenador de transplantes do hospital, esse é um dos legados dos obstáculos impostos no caso de transplantes pós-Covid.

Em agosto deste ano, Ana Rayane foi transferida de Natal para São Paulo. Com os novos exames, uma surpresa: a situação imunológica dela seria incompatível com um transplante de pulmão habitual. Isso é o mesmo que dizer que, na prática, os anticorpos da paciente poderiam rejeitar o novo órgão.

“Ela recebeu muita transfusão de sangue, tinha acabado de ter filho. Então, estava com a imunidade totalmente sensibilizada. Para você ter ideia, de cada cem doadores que fossem compatíveis com ela, só um serviria do ponto de vista imunológico”, conta o médico Afonso Júnior.

A equipe decidiu então por um procedimento inédito no Brasil: uma plasmaferese momentos antes da cirurgia. Neste processo, os anticorpos são retirados do corpo, como se fosse uma diálise, só que específica para os anticorpos. Isso teria de ser feito já no centro cirúrgico para o transplante, nada dava para ser antes.

A equipe do banco de sangue do Einstein ficou de sobreaviso 24 horas por dia, pois a qualquer momento poderia aparecer um órgão de um doador. Em 31 de agosto, após a plasmaferese e 12 horas de operação, Ana Rayane recebeu, enfim, um novo pulmão.

“São pouquíssimos centros do mundo que conseguem fazer isso”, explicou o coordenador de transplantes do hospital. Depois de um período de dois meses de recuperação, Rayane teve alta médica nesta segunda-feira (1º).

Já o analista de sistemas Henrique Batista do Nascimento, que realizou o procedimento no Incor, teve alta em 20 de setembro. Agora, ele se recupera em casa, na Brasilândia, Zona Norte de São Paulo, ao lado da esposa e do filho de apenas um ano.

Debate sobre gravidade x ordem de chegada

Segundo a Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo, há 117 pessoas na fila de espera por um pulmão no estado – nenhuma por causa das complicações do coronavírus.

Segundo o médico Paulo Pêgo, diretor da Divisão de Cirurgia Torácica e do Programa de Transplante de Pulmão do Incor, a lista de espera de transplantes hoje é essencialmente cronológica. Ou seja, por ordem de entrada.

Até a chegada da Covid, a maior parte dos pacientes que recebiam um novo pulmão não estava com um quadro grave de saúde. “O doente de transplante de pulmão muitas vezes vem de casa. Ele está dependendo de oxigênio, mas está andando, comendo, com uma nutrição razoável”, disse Pego.

Quando os pacientes de Covid começam a ser avaliados para transplante, a média de espera da lista, que é de 1,5 ano, se torna um impasse. Eles provavelmente não sobreviveriam se tivessem de esperar.

No entanto, a gravidade do quadro de um paciente que precisa de um novo pulmão não é suficiente para que ele seja priorizado.

“Isso [a priorização] foi discutido muito a nível mundial. Hoje, nos Estados Unidos, se usa o ‘Lung Allocation Score’ (Pontuação de Alocação do Pulmão), que leva em consideração o risco de vida versus a chance de sobrevida. No Brasil, não temos isso ainda”, disse o diretor do Incor.

Quando os médicos decidem que algum paciente está apto para a cirurgia e a priorização, o caso é levado à Câmara Técnica da Secretaria Estadual de Saúde. Se não houver consenso, a decisão vai para a Câmara Nacional. Na deliberação, o médico do paciente não tem poder de voto, para não haver conflito de interesse.

“Isso não é matemático, isso não é fácil de discutir. É muito complexo”, diz Pego.

Médicos ressaltam que a priorização na lista de espera não é uma condição específica do paciente pós-Covid. Ela pode ser oferecida a qualquer paciente da lista de espera que tenha o quadro agravado e boas condições de recuperação.

Procedimentos via SUS

A maior parte dos transplantes de pulmão pós-Covid realizados no Brasil ocorreu através do SUS.

“Na prática, essas pessoas tiveram tratamentos que outras pessoas em países ricos não tiveram. Ou que, no Brasil, pelo sistema de saúde suplementar, não teriam”, avalia o médico Paula Pego, do Incor.

Os transplantes, assim como a terapia ECMO, não estão no rol da Agência Nacional de Saúde (ANS) e não são oferecidos pelos planos de saúde particulares.

Um transplante de pulmão custa, em média, de R$ 150 a 200 mil. Já a terapia ECMO pode sair – por dia – cerca de R$ 30 mil.

Dos quatro transplantes do Einstein, dois aconteceram por meio do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde (PROADI-SUS), uma aliança entre seis hospitais de referência no Brasil e o Ministério da Saúde.

“Nosso programa é público, ele está aberto a pacientes de qualquer estado, de qualquer cidade do país”, afirma Afonso Júnior, do Einstein.

Gazeta Web

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